Querelas do Brasil

“O Brazil não conhece o Brasil, / O Brasil nunca foi ao Brazil.” Estes são os versos iniciais de uma das inúmeras obras-primas do poeta Aldir Blanc, que nos deixou, na semana passada, vitimado pela covid-19. Composta em parceria com Maurício Tapajós e eternizada na magistral interpretação de Elis Regina, Querelas do Brasil, de abril de 1978, chama a atenção para as mazelas vividas pela população e escondidas na propaganda oficial da ditadura. Seu título faz uma brincadeira ou um contraponto a outro ícone de nossa cultura, a música Aquarela do Brasil, de Ary Barroso, um hino-exaltação de 1939 em sintonia com a visão ufanista característica do Estado Novo.

Passados 42 anos de seu lançamento e 35 anos de restauração da democracia política em nosso país, pode-se afirmar que as mazelas denunciadas pelo poeta continuam presentes na vida da maioria da população. Se é verdade que, na época da ditadura, o regime adotava a estratégia de “jogar a sujeira para debaixo do tapete”, no período democrático, o que se verifica é uma invisibilidade social. Porém, a crise provocada pela pandemia está jogando luz sobre a situação.

O avanço da contaminação em velocidade exponencial tem trazido enormes desafios para os gestores públicos, com destaque para as ações necessárias à garantia de atendimento no sistema de saúde para tanta gente ao mesmo tempo. Nesse sentido, temos presenciado a construção e implantação de dezenas de hospitais de campanha em todas as regiões do país, sem dúvida uma medida acertada. O processo tem permitido à sociedade enxergar esqueletos saindo dos armários da gestão pública nos níveis federal, estadual e municipal.

Um dos esqueletos é a absoluta falta de estrutura do sistema público de saúde. Notícias diárias mostram que a rede hospitalar historicamente existente é caracterizada pela ausência de equipamentos, insumos e profissionais. O quadro não surgiu com a pandemia, sendo apenas agravado por ela.

Outro esqueleto diz respeito aos processos de compras. As regras estabelecidas na legislação ordinária são bastante claras, mas, corretamente, foram flexibilizadas de modo a permitir agilidade frente a cenário de emergência. Diante da nova realidade, estamos presenciando gestores sofrendo a pressão provocada pelo crescimento no número de infectados e um mercado em que a demanda elevada provoca aumento significativo no valor dos produtos. É aí que mora o perigo.

O surgimento de pescadores de águas turvas, alguns velhos conhecidos de escândalos de corrupção, aproveitam o momento para, mais uma vez, tirar proveito. De um lado, vendedores e lobistas que não se satisfazem em conseguir bom resultado financeiro com as vendas e, de outro, gestores que se aproveitam do momento para colocar propina nas contas bancárias pessoais. E é inacreditável que o comportamento continue se repetindo mesmo depois dos inúmeros processos e prisões de políticos e empresários a partir da Lava-Jato e de operações correlatas.

Se é verdade afirmar que corrupção existe desde que o mundo é mundo, também é correto constatar que vem se ampliando na sociedade o sentimento de condenação a esse tipo de prática. Cabe ressaltar que, desde 1995, foram criados muitos mecanismos de controle da gestão pública que têm possibilitado algum nível de redução dessa prática nefasta. Claro que seria ilusão acreditar na sua completa extinção, mas sou otimista em relação ao futuro.

Por isso, as eleições municipais deste ano, previstas para outubro ou alguns meses depois, revelam-se como oportunidade ímpar para a sociedade poder fazer suas escolhas, verificando o passado de candidatos, valorizando candidaturas que abominem tais comportamentos e contribuindo para aprimorar a gestão pública das cidades.

Já para quem pretende se candidatar, as chances de vitória serão tão maiores quanto maior for a percepção pelo eleitorado de que as propostas estão alinhadas com as respectivas histórias de vida. A imprescindível construção de narrativa precisará estar apoiada por uma imagem de coerência e credibilidade, como maneira de se diferenciar da concorrência.

Por fim, a maior homenagem que podemos prestar a Aldir Blanc e aos milhares de pessoas falecidas na pandemia é aproveitar os processos eleitorais para aprimorar a gestão pública, tanto nos executivos quanto nos legislativos, de maneira a reduzir significativamente as querelas do Brasil.

Artigo publicado no jornal Correio Braziliense de 15/05/2020.

Veja também https://focanaestrategia.com/empatia-compaixao-e-invisibilidade/

Ouça minha análise sobre campanhas eleitorais nas rede sociais https://focanaestrategia.com/nodetalhe-em-09-03-2020/

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Ouça “Querelas do Brasil” na voz de Elis Regina https://www.youtube.com/watch?v=j8r2sytKs-I

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