Em janeiro o mundo foi informado do surto de coronavírus na China. A reação aqui foi considerar que seria um problema local. Passados 10 dias, o vírus chegou à Europa, mas ainda parecia longe de nossa realidade. Até que em 26 de fevereiro, quarta-feira de cinzas, foi confirmado o primeiro caso no Brasil. Desde então começou a cair a ficha. Vimos o ministro da Saúde assumir a cada dia o protagonismo da ação governamental no enfrentamento da crise ao mesmo tempo que convivíamos com os movimentos diversionistas do presidente, chegando a afirmar, na volta dos EUA, não ver motivo para histeria.
Felizmente, após as críticas dos mais diversos segmentos, incluindo boa parte de pessoas que nele votaram e apoiam seu governo, na última quarta-feira mudou a postura ao anunciar, em uma coletiva na qual estava acompanhado de vários ministros, diversas medidas com base na decretação do estado de calamidade pública aprovado pelo Congresso Nacional. Com isso, será possível ampliar a utilização de recursos públicos para além dos limites da Lei de Responsabilidade Fiscal.
Porém, ainda estamos longe, muito longe, de superar um quadro dramático: a situação falimentar da quase totalidade dos municípios brasileiros. Diariamente somos bombardeados por notícias de crise em todas as regiões do país com a população vivendo a tragédia da ausência de serviços públicos, especialmente nas áreas de saúde e educação. Como já escrevi algumas vezes, a Constituição de 1988 delegou novas e imensas responsabilidades aos municípios. Essa decisão foi amplamente comemorada pelas administrações eleitas naquele ano ante a expectativa de receberem os recursos necessários correspondentes às novas atribuições.
Passados 32 anos, o que vemos? Prefeituras sem recursos e com demanda cada vez maior por serviços de qualidade. E essa crise estrutural só vai se agravar em razão dos já esperados reflexos provocados pela pandemia, tanto no atendimento às vítimas quanto na queda vertiginosa da atividade econômica. Já se especula que o crescimento do PIB em 2020 será igual a zero ou até mesmo negativo. Para agravar o quadro, não custa lembrar que na maioria esmagadora dos municípios o principal empregador é o Poder Executivo. Ou seja, num cenário de curto prazo, mesmo com o governo federal irrigando recursos novos, boa ou a maior parte ainda será usada para pagamento de salários.
Mantido o calendário eleitoral, no dia 4 de outubro a população irá às urnas para escolher as pessoas que vão exercer, nos quatro anos seguintes, seus mandatos nas prefeituras e câmaras municipais com a responsabilidade de enfrentar essa situação. Cabem aqui algumas perguntas. Como será a narrativa nas respectivas campanhas? Vamos assistir “o futuro repetir o passado”, como previa Cazuza, com a repetição das velhas promessas, ou seremos surpreendidos por novidades? Bem, quaisquer que sejam as respostas, a questão-chave a ser enfrentada não depende exclusivamente de cada governo municipal.
Sem uma profunda reforma na distribuição das receitas entre os entes federados, que passe por maior destinação de recursos financeiros de forma sistemática para os municípios, continuaremos a presenciar uma cena recorrente na qual, a cada semana, o gabinete de cada prefeito é transferido para Brasília onde fica, em périplo enlouquecido por ministérios e Congresso Nacional, buscando recursos. É uma permanente e exaustiva corrida em que nunca se consegue cruzar a linha de chegada. Ou ainda, tal qual o mito de Sísifo a empurrar uma pedra até o topo para vê-la rolar montanha abaixo, sendo obrigado a repetir indefinidamente o mesmo movimento.
É claro que esse tema não emociona ou mobiliza o interesse do eleitorado que sempre anseia por respostas objetivas para as demandas reprimidas. Como então colocá-lo na pauta eleitoral? Por ser questão relevante do ponto de vista estrutural na administração pública, creio que uma maneira seria estimular que, em cada município, os candidatos às prefeituras formalizassem um pacto em defesa da mudança. Assim, esse assunto viria à tona de maneira supra e pluripartidária, dando demonstração de maturidade política.
Para isso, o RenovaBR, o Acredito, o Livres, o Agora! e outros movimentos cívicos poderiam abraçar essa causa e, respaldados na legitimidade já conquistada, liderar um movimento conjunto para provocar a imprescindível e inadiável mudança. Afinal, nós, cidadãos, vivemos nas cidades.
Artigo publicado no jornal Correio Braziliense de 20/03/2020.
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