NÃO É DE COMER, MAS ALIMENTA

Hoje se completam 59 anos da articulação cívico-militar que culminou com o golpe que levou à deposição do presidente João Goulart. Naquele ano, 18 dias antes as forças políticas que apoiavam o governo realizaram um comício no Rio de Janeiro, em frente à estação ferroviária Central do Brasil ao lado da sede do Ministério do Exército no estado. A luta era pela adoção de um conjunto de medidas conhecidas como “reformas de base”, sendo a que mais enfrentava resistência em parcelas expressivas da sociedade era a reforma agrária.

Em um clima de conflito agudo, Jango abraçou a palavra de ordem “reforma agrária na lei ou na marra”, partindo da premissa que teria ao seu lado apoio social suficiente para fazer valer suas propostas. Ledo engano! No excelente documentário “Jango”, de Silvio Tendler, o General Muricy dá um depoimento que sintetiza o real tamanho da resistência ao golpe: “caiu como um castelo de cartas”.

Para quem não viveu os 21 anos de ditadura pode parecer que os militares tomaram de assalto o poder à revelia da sociedade. Na verdade, expressivas parcelas da população brasileira apoiaram decididamente a intervenção. E entre as lideranças políticas o mosaico de apoio ao movimento reunia figuras expressivas como os governadores Magalhães Pinto, Ademar de Barros e Carlos Lacerda.

Fazendo uma viagem no tempo e chegando aos dias atuais constata-se um clima de polarização política no país, em que as ruas e as pesquisas mostram a existência de um apoio significativo a modelos autoritários de governo. Não à toa o presidente eleito em 2018 passou sua campanha e os quatro anos de mandato fazendo declarações exaltando o golpe de 1964 e estimulando ataques às instituições republicanas.

Da mesma forma, após sua derrota por pequena margem nas últimas eleições, insistiu na tese de fraude e fez questão de declarar seu apoio ao espetáculo deplorável dos acampamentos em frente aos quarteis em que os autointitulados patriotas reivindicavam, entre outras bandeiras, intervenção militar, fechamento do STF, prisão do presidente legitima e democraticamente eleito. Não satisfeitos, esses ditos patriotas resolveram avançar em direção a uma tentativa de golpe no dia 8 de janeiro, felizmente fracassada.

Porém, para surpresa de muita gente, uma pesquisa do Atlas Intel dia 10 de janeiro revelou que 38% da população consideravam que a depredação do STF, Congresso Nacional e do Palácio do Planalto era, de alguma forma, justificável. Na mesma pesquisa 39,7% não reconheciam o resultado das urnas e 36,8% se diziam favoráveis à intervenção militar para anular as últimas eleições presidenciais. O que podemos depreender desses resultados e de outros bastante similares?

Desde a redemocratização do país, a partir de 1985, foi possível experimentarmos avanços em diversas áreas, como o Plano Real, o Programa Bolsa Família e a ampliação dos direitos civis, com destaque para a criminalização do racismo e da homofobia.

Entretanto, foi justamente na questão fulcral do regime democrático em que vivenciamos sucessivos desgastes. Refiro-me especialmente ao progressivo afastamento entre a representação política e a maioria da sociedade. É de domínio público que, passados poucos meses de um processo eleitoral, a ampla maioria dos eleitores simplesmente não se lembra em que votou para vereador ou deputado. E uma parte menor, mas ainda significativa, não se recorda de seu voto para prefeito, governador ou mesmo presidente. Outro indicador relevante é o percentual de abstenção que tem sido cada vez mais elevado, sendo que em 2022 mais de 31 milhões de eleitores adotaram essa opção.

É imperioso encontrarmos novas maneiras no “fazer política” em que seja possível incorporar os segmentos descontentes e/ou céticos. Em tempos de redes sociais e proliferação de fake news é também imperativo que haja um processo republicano e sistemático voltado à educação, desde a infância, para o pleno exercício da cidadania. Não se trata da velha aula de moral e cívica, mas de construir uma consciência coletiva do que realmente deve ser valorizado, no terreno dos costumes, com a valorização da diversidade, na área ambiental, com a preservação dos nossos ecossistemas, além de passar pelas questões mais básicas como o respeito ao patrimônio público e às leis de trânsito.

É evidente que o golpe há 59 anos na data de hoje não pode ser esquecido e deve ser repudiado. Porém, não basta ficarmos lembrando ou falando na importância da defesa da democracia. É preciso desenvolver a compreensão social que a democracia não se come, mas é um alimento imprescindível.

Artigo publicado no jornal Correio Braziliense edição de 31/03/2023 https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2023/03/5084124-artigo-nao-e-de-comer-mas-alimenta.html

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