NÃO É COMIGO!

NÃO É COMIGO!

Dois amigos caminhavam pela calçada em uma área residencial quando, de repente, um deles pisa em falso num buraco e quase torce o pé. De imediato, vira-se para o amigo e exclama: “Cadê a Prefeitura que não conserta essa calçada?”. Segue-se, então um diálogo entre os dois em que não poupam impropérios contra a administração pública. Logo se forma uma rodinha com mais pedestres fazendo coro com a reclamação e na acusação à administração pública. Essa cena é muito comum, principalmente nas grandes cidades brasileiras. Mas, afinal, quem é responsável pela manutenção das calçadas?

Essa pergunta traz à tona uma característica presente na cultura nacional, qual seja a atitude confortável de eximir cidadãos e cidadãs de suas obrigações e responsabilidades. E não é coincidência que ao realizarmos uma simples pesquisa na nossa Constituição Federal encontremos 195 vezes a palavra “direito” e apenas em 54 ocasiões a palavra “dever”. Porém, mesmo quando citado no texto constitucional, o “dever” está associado à obrigação do Estado e não das pessoas. Ironicamente, até mesmo no capítulo intitulado “DOS DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS”, os “deveres” encontram-se apenas no título.

Faço essa introdução para tratar de um tema absolutamente contemporâneo e que, apesar de alguns avanços, ainda não tem merecido a devida atenção da sociedade e do poder público. Refiro-me à caminhabilidade, uma medida quantitativa e qualitativa para identificar o quão convidativa uma área pode ser para se caminhar. Em outras palavras, o grau de acessibilidade oferecida a pedestres pelas calçadas e passeios existentes nas cidades.

Com o objetivo de mobilizar a sociedade e os governos para o tema, o dia 22 de setembro foi definido como Dia Mundial Sem Carro. E no dia 16 do mesmo mês tem início a Semana da Mobilidade, quando são realizadas atividades em defesa do meio ambiente e da qualidade de vida em cidades do mundo todo, procurando chamar a atenção para as condições de trânsito, em especial, das calçadas e passeios públicos. E como está o Brasil nesse contexto?

Para responder a essa pergunta, o Portal Mobilize Brasil realizou dois estudos. O primeiro, em 2012, quando foi avaliada a situação em 39 municípios distribuídos por 12 estados. A média final de todas as avaliações ficou em 3,47. Esse índice é bem abaixo de 8, nota mínima estabelecida pela coordenação do estudo. Já em 2019, o estudo foi realizado em 27 capitais de estado, examinando logradouros próximos a equipamentos públicos como escolas e hospitais. Os resultados foram divulgados nesta quinta-feira e a média nacional ficou em 5,71. Melhorou, mas ainda ficou longe da nota mínima.

Neste ano, a cidade de SP foi a melhor pontuada com 6,93. E um dado merece atenção: naquele município apenas 17% calçadas são de responsabilidade do poder público. A responsabilidade pela conservação das demais é de moradores exatamente nos trechos em frente a seus imóveis. Infelizmente, na grande maioria das cidades em nosso país, particularmente nas de maior contingente populacional, a realidade é que moradores não cumprem sua obrigação. Em vez de fazerem a manutenção, preferem colocar a culpa na prefeitura. Enquanto isso, pessoas se acidentam, cadeirantes e deficientes visuais não conseguem transitar.

A fuga da responsabilidade ou do dever de cidadania não se restringe às calçadas. Ela está presente em diversos outros aspectos da vida em nossa sociedade. É o caso, por exemplo, da coleta seletiva de lixo. É comum vermos pessoas dizendo “pra que separar o lixo se depois tudo vai para o mesmo aterro sanitário?”. Ou então “a companhia de limpeza não recolhe seletivamente, porque eu vou fazer?”. Ora, o que impede condomínios residenciais de estabelecerem parcerias com as diversas associações de catadores que se espalham pelo país?

Quem já não ouviu aquela frase odiosa “os garis estão aí pra recolher” dita por quem joga detritos no chão. E muitas vezes fazem isso estando próximos a cestas de lixo. Nessa hora vem à minha mente a lembrança dos torcedores japoneses que estiveram aqui na Copa do Mundo e nas Olimpíadas recolhendo o lixo produzido por eles logo após o final do jogo ou da competição.

Por fim, enquanto prevalecer entre nós a ideia de que o Estado é nosso pai e que cabe a ele nos prover todas as soluções, continuaremos patinando na perspectiva de construirmos cidades sustentáveis, modernas e inclusivas. E daremos razão aos versos de Lulu Santos: “assim caminha a humanidade, com passos de formiga e sem vontade”.

Orlando Thomé Cordeiro é consultor em estratégia       

Artigo publicado no jornal Correio Braziliense em 20/09/2019

https://www.correiobraziliense.com.br/

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